Educação Fora da Caixa: conheça escolas onde o aprendizado vai muito além da lousa e do caderno
Carteiras enfileiradas, giz, silêncio e lição de casa. Não é à toa que de cada quatro alunos que iniciam a educação fundamental no Brasil, um abandona a escola antes do último ano. Ou você realmente acha que uma lista com vinte exercícios é mais atraente do que um gibi, um livro ou o vídeo game? A alta taxa de evasão nas escolas – o Brasil, com 24,3%, é a terceira maior entre os 100 países com maior IDH – é a prova de que os modelos vigentes de educação deixaram de fazer sentido para o aluno e precisam de mudança.
Crianças dizem que a escola é chata, adolescentes cabulam aula e adultos se lembram dos melhores momentos dos tempos de colégio: a sala de aula passa longe dessas memórias, pode apostar. Se de um lado afirma-se que a escola é um “mal necessário”, do outro tem gente com a cabeça fervilhando de novas ideias e com disposição para provar o contrário, mostrando que é possível inovar a educação e transformar a experiência do aprendizado em algo tão atraente quanto um gibi do Batman e mais eficiente do que 50 minutos de aula às 7h15 da manhã.
Mas afinal do que será que estamos falando verdadeiramente ?
“Não tem a hora do brincar. O aprendizado pode ser uma brincadeira constante”, afirma Tião Rocha, antropólogo e educador, fundador do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, o CPCD, em Belo Horizonte, Minas Gerais. “Será que é possível a gente criar essa escola? Uma escola que seja uma escola alegre, prazerosa? Ou a escola tem que ser o serviço militar obrigatório aos 7 anos?”, questiona.
A entrevista faz parte do documentário “Quando Sinto que Já Sei”, uma obra que mostra práticas educacionais inovadoras em escolas brasileiras e que acende o debate sobre as reais necessidade de aprendizado de uma criança ou jovem. Mas quais são as mudanças propostas por essas iniciativas?
Assista ao vídeo:
Trailer – Quando Sinto que Já Sei
“Todo estudante também é um pesquisador”
Escolas inovadoras quebram muros (reais e invisíveis), dão voz às crianças, querem os pais e a comunidade por perto, repassam responsabilidades aos pequenos e dão importância ao pensar e ao argumentar em vez da repetição e exposição de conteúdo. Nessas escolas, o professor desce do tablado para mediar os alunos na construção do conhecimento e a brincadeira se torna a melhor forma de aprender para a vida. Em escolas inovadoras, ir para a aula deixa de ser “um saco”.
“[A escola] precisa abrir mão de muitos mecanismos que são contrários à emancipação, como as aulas fechadas (no espaço e no tempo), as turmas isoladas, as provas como sinônimo de avaliação, os mecanismos punitivos e repressivos como advertência, suspensão e expulsão etc., precisa dar voz de fato para todos os agentes da comunidade”, afirma Osvaldo Souza, professor da Escola Politeia, localizada em São Paulo (SP), em entrevista ao Hypeness.
Também abordada no documentário citado, a escola, que fica na zona oeste da cidade, é referência nacional em inovação e ensino democrático. Em salas que estimulam o contato entre as crianças de diferentes idades, os alunos são incentivados a pensar por si, com o objetivo de se desenvolverem de forma autônoma.
Na Escola Politeia, são levados em conta os interesses de cada estudante, bem como seu ritmo e limitações. Valores democráticos e éticos também estão presentes nas interações do dia a dia, ao dar prioridade ao trabalho em grupo e às responsabilidades de cada aluno. Segundo a escola, ao assumir compromissos e arcar com as consequências, a criança aprende a valorizar e a participar das decisões da vida em comunidade, algo que é fundamental para todo cidadão.
Escola Politeia
Estudar para a vida
Quem nunca ouviu um colega perguntar ao professor de Matemática pra que diabos ele iria usar a Fórmula de Baskhara na vida se ele não tinha a menor pretensão de ser engenheiro ou coisa do tipo?
Na grande maioria das escolas do Brasil, alunos sentam-se em suas carteiras e ouvem professores “explicarem a matéria”. Mitocôndrias, locuções adjetivas, equações do segundo grau e hidrólise: a menos que uma criança queira trabalhar em cada uma dessas áreas, estudar esses tópicos a fundo tem um único objetivo: o vestibular.
A prova, que permite o ingresso em universidades brasileiras, traz questões complexas, bastante específicas e que exigem do estudante mais memória do que capacidade de raciocínio e crítica. A metodologia padrão de educação é voltada para isso.
Mas faz sentido dedicar mais de 10 anos de educação de uma criança tendo como foco principal uma única prova?
Crianças aprendem sobre ribossomos e centríolos, mas não têm acesso a informações claras sobre sua própria sexualidade. Domina-se matrizes e complexas equações matemáticas, mas não se ensina sobre finanças pessoais básicas.
O aluno termina a escola com o nome de todos os presidentes do Brasil na ponta da língua, mas não é capaz de fazer uma escolha consciente na urna. Mais do que ter conhecimento, o importante é saber interpretá-lo e usá-lo de forma produtiva. O ensino não pode ser um preparatório para o vestibular, mas para a vida.
“Esta forma [de ensino] diferente acontece quando se propõe a formação de sujeitos autônomos que podem decidir melhor por sua vida e pela vida do que estão a sua volta”, afirma o gestor da Escola Politeia.
Pensar o ensino fora do foco do vestibular também auxilia a refletir sobre talentos e carreiras.Crianças de cinco anos querem ser bombeiros, astronautas, professores, mágicos e dançarinos.
Quando chegam no último ano da escola, contudo, essas mesmas crianças querem ser engenheiras mecânicas, publicitárias, advogadas e bioquímicas.
Sem menosprezar nenhuma dessas profissões ou desconsiderar o processo de amadurecimento de escolhas, não tem como negar: algo aconteceu durante os anos de estudo que causou uma abrupta mudança de rumo nessas vidas.
A Escola Politeia, por exemplo, estimula-se o aprendizado por meio de pesquisas.
Os temas são selecionados a partir dos próprios interesses de cada criança e geralmente abordam mais de uma disciplina, sempre contando com o suporte de um orientador. Assim, os alunos são capazes de resolver os problemas que escolhem para si, desenvolvendo capacidade crítica e adquirindo um conhecimento que muitas vezes vai além de sua área inicial de interesse.
Um bom exemplo disso é a história de uma das alunas que decidiu pesquisar sobre animais abandonados na rua.
O estudo sobre o assunto a levou a conhecer a cadela russa Laika, que foi enviada ao espaço. A curiosidade sobre o tema fez com que ela descobrisse o contexto da experiência, a Guerra Fria, e o entendimento sobre todos os conceitos políticos envolvidos. Por que dividir o ensino em matérias quando o mundo está conectado?
Outra escola que pensa o currículo escolar com base no interesse dos alunos é o Instituto Lumiar, que possui três unidades em São Paulo (SP). Durante as aulas, o aluno é colocado como sujeito ativo, de forma que conteúdos e habilidades são trabalhados de forma contextualizada, tornando-se mais atraentes para a criança e proporcionando uma experiência de aprendizado mais rica.
“Para a Lumiar, o currículo deve ser vivo, fato que acontece na medida em que todos o constroem e o vivenciam, planejando e replanejando as ações em sintonia com as necessidades e demandas coletivas e individuais“, explicou a Dra. Célia Maria Piva Cabral Senna, Diretora Pedagógica do Instituto Lumiar, para o Hypeness.
Expandir a capacidade do aluno e mantê-lo motivado é um desafio constante no Instituto Lumiar.
Por lá, o ensino tem como base a observação de fatos e a resposta a questionamentos que são de interesse de cada aluno e o professor, mais do que ditar conteúdos e visões de mundo, orienta cada etapa de estudo e descobertas.
O foco está em “garantir o interesse dos estudantes e garantir a magia do conhecimento dentro das nossas escolas“, afirma Dra. Célia.
Os modelos inovadores de educação permitem explorar talentos individualmente, desenvolvendo pessoas mais felizes e criativas, que não têm medo de errar ou explorar possibilidades.
Para o educador inglês Ken Robinson, o ensino às vezes é uma simples adestração, uma mera forma de “cortar asas” e barrar a criatividade. “Quando finalmente se tornam adultas, a maioria das crianças já perdeu essa capacidade. Elas adquirem verdadeiro pavor de errar […] e o resultado é que estamos produzindo indivíduos desprovidos de criatividade”, afirma durante uma palestra no TED.
Ken Robinson, no TED
O estímulo à criatividade e o repasse de responsabilidades às crianças faz parte do método inovador da Swanson Primary School, localizada em Auckland, na Nova Zelândia e que já foi matéria aqui no Hypeness. Na escola, a hora do recreio possui uma política de “zero regras” e a criançada fica livre para brincar como quiser, sem a supervisão de adultos. Clique aqui para ler mais sobre a experiência.
Escola Viva Inkiri
Também na Escola Viva Inkiri, localizada em Piracanga, na Bahia, a criatividade é levada a sério. Tendo como base os princípios espirituais do ser humano, o centro de educação tem como proposta a transformação interna e a valorização da liberdade de escolha.
Sem luxos, os professores estimulam o desenvolvimento dos pequenos por meio de atividades como a marcenaria, a cozinha e a sala de artes.
Com a união em mente e para permitir que cada criança se descubra e se experimente, a Inkiri evita divisões como “essa brincadeira é para meninos” ou “meninas fazem isso” e estimula valores como o respeito e a solidariedade.
Outro ponto relevante é que por lá não existe férias, feriado ou fim de semana. “Não temos um descanso porque ninguém está cansado“, afirma Ivana Jauregui, educadora uruguaia que fundou o centro, em 2008. Na Inkiri, crianças de 1 a 14 anos aprendem a se autorrealizar e conseguem se expressar em um ambiente livre de qualquer tipo de pressão ou preconceito.
Educação inclusiva
“– Quem mais influenciou na sua vida? – Minha diretora, Sra. Lopez – Como ela te influenciou? –
Quando nós nos metíamos em confusões, ela não nos suspendia. Ela ligava para nós, do escritório, e nos explicava como a sociedade é construída ao nosso redor. E ela nos falava que cada vez que alguém sai da escola, uma nova cela é construída na prisão. E uma vez ela fez com que todos nós nos levantássemos, um por vez, e disse que cada um de nós é importante.”
O diálogo acima é uma das histórias da página Humans of New York, projeto fotográfico que retrata as diferentes caras e almas de uma das maiores metrópoles do mundo.
A Educação é um tópico ainda mais complicado dentro de comunidades carentes. A necessidade por trabalhar desde cedo torna a rígida rotina escolar difícil de ser cumprida, o ensino padrão falha em encantar e estimular e a própria estrutura física do ambiente escolar e a condição de trabalho dos professores comprometem a eficiência do ensino.
As crianças, muitas das quais vivem à margem da sociedade e frequentemente enfrentam dificuldades em casa, sentem-se desestimuladas.
“A escola tem que sair da teoria e ir para a prática, ela tem que inspirar, alimentar a curiosidade e desenvolver habilidades, através da participação dos educandos, educadoras e da comunidades escolar.
A escola é ‘chata’ porque apresenta tudo pronto, igual para todos, não está aberta ao diálogo, à construção conjunta do seu currículo”, afirma Êda Luiz, diretora do CIEJA Campo Limpo, um Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos, localizado na zona sul de São Paulo (SP), que transformou a experiência do aprendizado.
CIEJA Campo Limpo
Hoje, toda a estrutura curricular do CIEJA é pautada na flexibilidade de horário, visando permitir que os alunos possam frequentar as aulas sem que isso prejudique suas atividades profissionais.
Os três turnos oferecidos funcionam em paralelo, de forma que o aluno que costuma ir às aulas pela manhã pode frequentar a escola também à noite, sem ser prejudicado.
No lugar das disciplinas costumeiras, a escola desenvolveu um modelo pedagógico que se baseia em quatro áreas de conhecimento: as Linguagens e Códigos, Ciências Humanas, Ensaios Lógicos e Artísticos e Ciências do Pensamento.
Dessa forma, ocorre a integração de diferentes áreas, facilitando a assimilação do conteúdo e a reflexão crítica.
Mais do que uma escola, o CIEJA Campo Limpo é um ambiente de integração, em que jovens que foram expulsos de outras escolas, adultos que decidiram voltar a estudar e deficientes trocam experiências e convivem em um ambiente pautado por valores como o respeito, a solidariedade e a responsabilidade.
E é justamente aí que está o segredo para uma educação inovadora, diz Êda. “São os princípios e valores construídos no coletivo: acolhimento, respeito, diálogo, solidariedade”.
No CIEJA Campo Limpo, todo mundo tem a chance de aprender.
Os alunos produzem conhecimento individual e coletivo, superando suas limitações e para quem vem com a velha história de que “não nasci para estudar”, Êda rebate: “Isso existe onde a escola não constrói coletivamente o Projeto Político Pedagógico, quando não respeita o educando ou educadores. As pessoas não vêem significado nessa escola e faz essa declaração para justificar a sua saída”.
Inovar é possível
Falar sobre inovação em educação no Brasil não é tarefa fácil. Há mais de 51,5 milhões2 de alunos matriculados na educação básica, estando 85,3%2 deles em escolas públicas, muitas das quais falham ao apresentar condições imprescindíveis de aprendizado, como saneamento básico.
É preciso ter um banheiro limpo, cadeiras, livros e uma abordagem pedagógica que favoreça o desenvolvimento da criança como ser humano, como cidadã.
Mas, infelizmente, isso ainda é pedir muito.
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